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CULTURA POPULAR

Bastidores das quadrilhas juninas: quem faz o show acontecer no São João do Recife

A Folha de Pernambuco entrevistou equipes de produção de três grandes quadrilhas juninas da cidade do Recife para entender como funcionam os bastidores das apresentações e de quem são as mãos que fazem a festa acontecer por trás do espetáculo

Vinte e cinco minutos marcam o tempo exato de uma apresentação tradicional de quadrilha junina. Um espetáculo que termina com o badalar dos sinos em celebração ao típico casamento, que finaliza a trama, e começa cerca de seis meses antes, com a preparação do arraial.

Enquanto a maioria das pessoas pensa em natal, verão, votos de ano novo e presentes, os quadrilheiros, espalhados pela cidade do Recife, planejam o tema, cenário, roteiro, figurino e a coreografia dos projetos artísticos que irão promover com as quadrilhas durante o ciclo junino do ano seguinte.

Eles são os rostos apreensivos nas arquibancadas e nas laterais das quadras, torcendo para que tudo saia como o planejado. São as mãos que ajustam o figurino de última hora, consertam o cenário e enxugam o suor. Sem fantasia e longe dos holofotes, costureiras, figurinistas, coreógrafos, projetistas e diretores artísticos fazem parte das histórias que o público não vê.

Comunidade

"A estreia de uma quadrilha é o resultado de um trabalho feito por uma imensidão de pessoas que não aparecem. Um batalhão de artistas que sonha junto o mesmo sonho", destaca Anderson Gomes, projetista da quadrilha Junina Tradição.

A entrevista com Anderson foi feita de pé, no meio da quadra da Escola Municipal Reitor João Alfredo, na Ilha do Leite, centro do Recife. Ao fundo, uma apresentadora animava o público que aguardava nas arquibancadas a estreia oficial da Tradição. Em meio aos gritos animados da multidão, Anderson percorria o local ajudando os cenógrafos na montagem dos adereços e tirando dúvidas sobre o posicionamento dos equipamentos.

"O projetista é a mente idealizadora do espetáculo, responsável por elaborar a ideia do tema. Para isso, é preciso pensar no assunto que vamos abordar, a cenografia necessária, o reportório musical e a ideia do casamento. Assim, somos, ao mesmo tempo, idealizadores e diretores artísticos, cuidando do espetáculo de ponta a ponta", explica.

Anderson Gomes, projetista da Junina Tradição. Foto: Ricardo Fernandes / Folha de Pernambuco

Ao lado de Anderson, outra figura circula incansavelmente pelo ambiente. É Ronaldo da Silva, o Foguinho, que a quase despercebido em meio à correria da preparação.

Em poucos minutos, ele monta os carrinhos que carregarão gigantescas maçãs do amor bordadas à mão, escala a estrutura onde encaixa peça por peça de uma igreja cenográfica com mais de dois metros de altura e ainda ajuda a equipe a desentalar uma parte do cenário presa no portão da quadra. “Sem esse cenário, não tem estreia”, diz.

Quando tudo já está quase pronto, ele vai até os bastidores e mostra a filha, que dança há 16 anos na Tradição. Foguinho conta que, depois de dez anos dançando e costurando as roupas dela, resolveu fazer cursos para participar da cenografia da quadrilha. Emocionado, destaca a força do trabalho em equipe para montar o espetáculo e diz que, do rascunho à montagem final, ver tudo pronto é emocionante: “as lágrimas caem sem que eu perceba”, comenta.

oguinho explica que já fez mais de 20 especializações e cursos para atuar na produção da Junia Tradição. Foto: Ricardo Fernandes / Folha de Pernambuco

Amor

Foi através do amor pela comunidade que surgiu também a Origem Nordestina, conta Jimmy Glauber, fundador e marcador da quadrilha.

"Nascemos no Morro da Conceição através de uma promessa de Suelane Moreira, uma mulher trans. Ela sempre esteve envolvida com o movimento cultural e teve o desejo de fazer uma quadrilha do Morro da Conceição. Para isso, ela fez uma promessa aos pés de Nossa Senhora, afirmando que, enquanto a quadrilha existisse, ela seguiria as regras da promessa", conta Jimmy.

Jimmy Glauber no traje de marcador da Origem Nordestina. Foto: Ricardo Fernandes / Folha de Pernambuco 

O azul de Nossa Senhora, que cobre as paredes do centro cultural da Origem, na Rua Córrego do Euclides, em Casa Amarela, Zona Norte do Recife, carrega a lembrança da promessa e transmite a mensagem do amor que vai além do espetáculo.

"A quadrilha junina trabalha muito a questão da arte educação, compreendendo que uma das nossas funções também é educar e instigar debates", comenta Anderson Andrade, diretor artístico da quadrilha. É dele a ideia por trás da apresentação da Origem neste ano.

"A gente conta uma história de amor inédita no São João de Pernambuco, onde trazemos um casamento junino de duas noivas", destaca. "É uma retomada das narrativas juninas que usavam da homofobia recreativa para trazer a figura do homossexual como piada. Temos como protagonistas duas mulheres que se amam e são dignas de direitos e de respeito". 

Anderson Andrade, com figurino da quadrilha Origem. Foto: Ricardo Fernandes / Folha de Pernambuco

Para o sociólogo Paulo Marcondes, a quadrilha junina sempre se mostrou um espaço de transformação social, capaz de incorporar novas narrativas e pautas contemporâneas. 

"Existia, há alguns anos atrás, a gaydrilha, que funcionava como uma parada gay. Essa quadrilha politizava a representação social, trazendo à cena questões ligadas à orientação homoafetiva e debates sobre reivindicação de direitos", ressaltou.

Ele destaca ainda que o poder de se modificar com o tempo, unir comunidades em torno de um projeto e rodar cidades do interior com tramas complexas sobre temas sociais é um dos grandes pilares da relevância cultural das quadrilhas para o estado.

É por amor e desejo de espalhar a mensagem da Origem, que Jimmy e os outros componentes dividem a rotina entre trabalho e dedicação à quadrilha.

"Trabalho também com vigilância em segurança privada e, no ciclo junino, divido minha rotina entre uma noite no trabalho e outra no São João. Mas, no final, é só gratidão e um sentimento de amor que é impossível de explicar. Somos família e essa família que bota a quadrilha na rua".

Legado 

A família de Alana Nascimento, fundadora da quadrilha Raio de Sol, tem aproximadamente 180 pessoas, ainda que ela afirme já ter perdido as contas. "Só dançando são 120 componentes. Fora isso, tem todo mundo da produção e quem ajuda a produção também entra na conta. A família, os amigos. De certa forma, todos fazem parte da Raio de Sol", brinca.

A filha, Leila, integra a composição de dança e o genro, Vandré Cechinel, comanda a direção artística. Poucos dias depois da estreia oficial da Raio de Sol, os três se encontraram na sede da quadrilha com objetivo de ajustar os detalhes finais para as competições. 

É nesse cenário que Maurício Francisco ou Maurício do Morro, como prefere ser chamado, entra em ação. Apresentado como "o melhor cenografista do estado" por Vandré, Maurício é o responsável pelos últimos três anos de criações cenográficas da quadrilha. 

Durante a conversa, ele entalha peças de isopor com rapidez e explica: "São os últimos detalhes que não entraram no tempo da estreia". Tímido, sua presença quase não é notada enquanto o barulho e a confusão das crianças que ensaiam a quadrilha infantil tomam conta do ambiente, um legado que relembra as origens da Raio de Sol, fundada por Alana a partir de uma quadrilha mirim.  

"A Raio de Sol nasceu do meu desejo de conduzir as quadrilhas que eu tinha na minha escola, em 1996. Acompanhei o crescimento das crianças até que foi preciso se transformar em quadrilha adulta porque as crianças cresceram. Hoje, temos as duas. Para mim, é importante manter esse legado".

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